quarta-feira, 31 de março de 2010

Um 38 por favor

Quando começou escrever ainda não sabia a quem destinaria uma carta. Uma carta destinada a quem? Ela mesmo ignorava. De certo que faria bem, como na época em que um chá de camomila bastava...

O que mais me incomoda meu querido irmão são os sentimentos que rompem minha pele e as raízes que rasgam a sola dos meus pés cavando em direção ao centro do mundo. A gravitação universal e todos esses terremotos, a violência, os germes, os vermes - Meu deus, quantos vermes passam na minha calçada, usando sapatos, meias brancas e roupas bem passadas. -, os redemoinhos de poeira, os gritos, as músicas de mau gosto, os bêbados chatos, os sóbrios impertinentes, o derretimento das geleiras, as bombas no Oriente, um meteoro que vem em direção a Terra e vai cair bem em cima da minha casa. Devo ascender um incenso para purificar o ambiente e aguardar? Devo me resignar frente a tudo o que discordo? Aceitar os fatos? Render-me?

Esse faz de conta diário já não sei se é real, tantas pequenas dores, grandes decepções, sereias encantadas, fadas e anões. Tantas idas ao poço para buscar água, moedas perdidas, esperanças mortas na estrada. Meu vestido vermelho, meus livros, alguns perfumes, dois pares de brincos de prata e eu nunca, nunca, juro, entendi nada.

Milhões de pares de olhos olham para todos os lados enquanto tropeço em pombos pulguentos no caminho pela praça. O que necessito em pleno março de 2010? Não sei, mas certamente que não é um cravo de lapela. Quem sabe um chapéu de verão, um par de sapatinhos de rubi e um 38 na mão.

Serei algum tipo de palhaço, marionete, títere ou bufão? Se fiz as coisas que me mandaram, que precisei fazer, se compareci aos compromissos, falei com pessoas, levei o lixo para fora, dei opiniões, sorri, briguei, foi tudo um ato irresponsável, eu não sabia o que fazia. Já se sentiu anestesiado? Pense era isso que se passava. Quando foi que acordei? Acordei?

Mas de fato a vida nunca deixa de ser engraçada e de qualquer desgraça pode sair uma boa piada. O cômico é tragicômico, porque nossa existência é tragicômica, e é quando perde a graça, e é quando dói. Sair para comprar um cachorro-quente na rua tem sido mais perigoso do que caçar um javali para janta. Sinto-me ameaçada, você não se sente?

É certo evitar sofrimentos desnecessários a todo custo, parar de odiar a humanidade, perturbar-se menos, deixar de ser ingênua, não sentir medo do escuro e colocar as botitas na lama. Não tive opção, cravo de lapela ao chão. Em tempo de guerra não há tempo para amar, é preciso fazer contas, estabelecer metas, executar planos, sobreviver.

- Muito trabalho estafa a alma, e você ainda precisa de tempo para pensar; tempo para apagar (apagar é preciso quando o tempo é cruel); tempo para levar para o conserto aquele óculos quebrado e esquecido há três meses no fundo da gaveta; tempo para o bicho de estimação; tempo para resolver pormenores domésticos, lavar a louça e trocar a lâmpada; um tempo infinito para perder em filas para todo o tipo de coisas; tempo para dar um tempo. E quando o tempo é curto como é que se pode perdê-lo com um cravo de lapela? Me responda querido. -

Escreveu ainda sobre alguns sonhos que sonhava, os desejos que todos os dias da sua vida desejava. Ela não sabia que tudo aquilo era senão outro nada. Um engano, uma tapeação, um delírio, um engodo, um devaneio, uma miragem, uma alucinação. Um uso de drogas sem drogas, um jardim de flores mortas em exposição. Disse ainda que cansara de escrever, que lhe amava, sentia saudades e agora iria ler um pouco antes de dormir. E que, sobretudo e todas as coisas, seu coração é e para sempre será todo dele.
.
.
imagem: Jean Beraud